Numa manhã no final dos anos 1990, Kobra Dastgirzada fazia compras no centro de Cabul quando foi abordada por um policial Taleban. O barbudo de turbante exigiu que mostrasse a mão. Kobra estendeu o braço para fora da burca, desvendando unhas pintadas -um atestado de prostituição aos olhos do então regime afegão. "Vou chicotear seus dedos", sentenciou o agente.

Pela prática vigente, o castigo só acabaria quando as mãos estivessem em carne viva. Mas, ao ver Kobra implorar clemência em pashtun, idioma oficial do Taleban num país rachado por etnias rivais, o policial pensou estar, talvez, diante de uma parente distante. Sem enxergar seu rosto coberto, decidiu deixá-la ir embora. 

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A maioria das afegãs não teve a mesma sorte. Nas trevas da era Taleban, o governo mantinha as mulheres num abismo de violência física e moral. Maiores vítimas de um Estado miserável e desconectado do mundo, elas eram trancafiadas, espancadas, apedrejadas, estupradas, vendidas e banidas de qualquer tipo de ensino e da maioria dos hospitais.

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Da ocupação nasceu um governo pró-ocidental comprometido, ao menos em tese, com a igualdade de gêneros.

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O cheiro nas ruas de Cabul mistura emanações de esgoto a céu aberto e lixo amontoado por toda parte. A capital afegã quase não tem sinal de trânsito nem iluminação pública.  

Ataques insurgentes são frequentes, e o raio de controle efetivo do governo mal chega à periferia da cidade. Na reta final da ocupação militar estrangeira iniciada em 2001, o Afeganistão permanece um país disfuncional, perigoso e frágil,

O ENIMIGO

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Se a coalizão atingiu o objetivo inicial de erradicar do país as bases da Al Qaeda de onde Osama bin Laden teria orquestrado o 11 de Setembro, outro inimigo permanece ativo e poderoso. O Taleban, que governou o país com mão de ferro acolheu Bin Laden até a invasão americana, retomou nos últimos anos controle sobre a maior parte do território.

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“Lutaremos até que os invasores saiam e criaremos um Estado Islamico” disse Zabihullah Mujahid, porta-voz do Taleban, falando ao telefone desde um lugar secreto. Para tentar voltar ao poder os insurgentes exploram as falhas estruturais do governo, alternando ações de combate e manobras políticas, Uma das brechas mais óbvias é a vulnerabilidade da segurança nacional.

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O Taleban argumenta que, por representar a etnia majoritária pashtun e os valores conservadores dominantes na sociedade não pode ser marginalizado.“Os ocidentais forçam a barra para dar representatividade às minorias em detrimento dos pashtuns”, critica a deputada Arian You. “se o Taleban não pode ser derrotado, então é preciso incluí-lo no governo”. 

MAL ENTENDIDO

O Taleban sempre quis ter relações normais com o resto do mundo, mas houve um mal-entendido com os países ocidentais. Eles não entenderam que o nosso governo levou ao poder a cultura rural, refletindo valores tradicionais e religiosos do nosso povo. Em todo caso, não só nunca houve abusos sistemáticos conta a população  como estávamos empenhados em promover a todos os afegãos os direitos humanos reconhecido pelos ensinamentos islâmicos. Eram tempos difíceis, com a economia arruinada pela guerra. Fazíamos de tudo para que, apesar dos magros recursos e das sanções, todos mundo vivesse de maneira digna. Também nunca houve política contrária às mulheres. Apenas estávamos querendo protege-las num contexto ainda marcado pela guerra civil (92-96). Qualquer um que pesquisar a legislação daquela época perceberá que nunca existiu nenhuma lei proibindo mulheres de trabalhar ou estudar. Implementar a sharia (lei islâmica) nunca foi um problema, já que isso é que os afegão querem. Até hoje os juízes no governo são clérigos islâmicos, não magistrados formados em universidades britânicas. 

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Abdul 

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O Afeganistão só irá melhorar quando os estrangeiros saírem de vez. As pessoas estão cansadas das barbaridades cometidas pelos americanos e da péssima gestão do país. Isso alimenta a rejeição aos invasores. Nenhuma guerrilha sobrevive sem apoio popular.

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Kobra, que trocou a burca pelo "hijab", simples lenço sobre o cabelo, tornou-se símbolo dos novos tempos. Hoje, com 43 anos, ela dirige, viaja sozinha e, completando a lista de atividades vetadas para mulheres no antigo regime, toca a própria empresa, voltada justamente para o público feminino. 

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*Trechos retirados das matérias publicada na Folha de São Paulo e Revista Serafina 2012.